terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Primeira Parte: A Grande Chuva

- Dé!

- Dé! O campinho já está bom! Não tem mais lama.

Dé ouve, mas prefere não responder ao chamado.

- Dé! O Zinho quer você no time dele!

Dé se esconde embaixo da cama. Agarra-se à bola feita de gomos remendados e chora. Apesar dos soluços involuntários, tenta não se mexer muito, posto que seu corpo, arroxeado de cima abaixo, ainda dói. Evita até fechar a boca e encostar os dentes, já que um dos golpes lhe machucara o maxilar. Desde o dia em que a enchente inundou a rua de baixo, passa a maior parte das horas no quarto que divide com o irmão, olhando para sua bola, um dos poucos brinquedos que possui. Lembra do dia da grande chuva, da primeira vez que fizera um gol contra o time do Zinho, o jogador mais habilidoso da vizinhança e um ano mais velho do que ele.

O Zinho quase nunca perdia um jogo contra o time da rua do Dé. Além de bom driblador e matador oportunista, qualidades obrigatórias de qualquer bom centroavante, o negrinho raquítico, esticado, de joelhos bolachudos e olhos sempre arregalados, era líder. Sabia escolher bem seus jogadores e fazia com que todos o obedecessem. No jogo do Zinho, o seu comando transformava a pelada despretensiosa num balé malandro onde a coreografia era marcada pelo vai e vem da bola, a confundir o adversário, e cujo ato final era sempre o chute certeiro e elegante do bailarino principal. O time era montado exclusivamente para lhe servir. Talento e egoísmo que lhe renderam, tempos depois, muitas glórias profissionais e muitas desgraças pessoais.

Mas no dia da grande chuva, o aguaceiro que caiu do céu atrapalhou muito o time-orquestra do Zinho. O campinho ficou empoçado. Uma lama preta atolava os pés e não deixava a bola rolar. Era um futebol feio de se ver, os corpos se emporcalhavam, escorregavam em freadas bruscas quando a bola empacava numa poça. Os meninos batizavam-se de um caldo negro e espesso. Alguns garotos meio que desistiam do futebol e se divertiam mais com os carrinhos - oportunidade em que deslizavam deliciosamente sobre a lama - que com a tentativa de um chute a gol.

O Zinho se irritava. Ele gostava de um jogo rasteiro, preciso. Apreciava ver a pelota sendo rolada de pé em pé e pensava que bola alta não era coisa de futebol. Seus dribles eram no chão, nunca arriscava um chapéu, ainda que sua altura o pudesse favorecer. Aquele lamaçal o estava deixando irado. Lá pelas tantas, em ato de desespero, deu um bicudo do meio do campo, com tal força - algo um tanto surpreendente para aquele corpo acanhado - que a bola costurada do Dé, ao atingir a quina da trave, deixara para trás um de seus gomos.

No dia daquele jogo, no dia da grande chuva, Dé, dono da bola, apenas observava o jogo de fora. Depois do bicudo do Zinho, recolheu o gomo que saltara da bola e o guardou no bolso. Era necessário costurar o brinquedo após a partida. Dé cuidava bem de seu brinquedo porque o havia fabricado. Aquela bola não tinha um dono, tinha um criador. Surgira do esforço daquele menino, que por cerca de duas semanas havia revirado o lixo de todas as ruas do bairro para achar restos de outras bolas largados por aí. Cada pedaço de couro achado era uma nova peça a se encaixar no quebra-cabeça costurado por Dé para revestir o interior emborrachado, encontrado no caminho da escola. Por sorte, a válvula da peça de borracha ainda estava preservada.

Não demorou e o brinquedo tornou-se a maior diversão dos meninos do bairro. Diariamente, uma procissão de moleques descalços subia a ladeira do bairro para jogar no campinho da Rua de Cima, um terreno de barro preto bem em frente à casa do Dé.

Encoberto pela penumbra do quarto, Dé relembra que nunca tinha visto o Zinho com tanta raiva. Após o chute que acertara trave, o pequeno craque, com sua ira em ascensão, acertou uma cotovelada no Marcelinho, que tentava lhe roubar a bola. O sangue escorreu rápido pelo nariz do golpeado e o tempo fechou em volta do Zinho. Queriam expulsá-lo. Esboçou-se um princípio de briga, mas os amigos do agressor o protegeram e ninguém mais ousou tirar o Zinho do jogo.

O Marcelinho, coitado, correu chorando para sua casa. Precisavam de um substituto. Alguém apontou para o Dé, que, àquela altura, já entendera a saída para aquele jogo lamacento.

E foi então que logo no primeiro lance após o incidente da cotovelada o Dé entrou em campo e se viu, afortunadamente, diante da bola, paradinha, quase boiando numa poça, depois de uma dividida que deixara dois pirralhos deitados na lama. Dé hesitou um segundinho apenas, o suficiente para que o Zinho arrancasse em sua direção. Já o momento seguinte viria a testemunhar algo que os garotos do bairro ainda lembrariam anos depois.

Dé fincou o pé na lama e, com um movimento rápido, ejetou a bola acima de si e deu um passo para o lado. Neste ínfimo intervalo de tempo, – porque os grandes momentos são prófugos - viu o Zinho passar à sua frente, com os olhos ainda mais esbugalhados, escorregando, desequilibrando, parecendo que dava passos para trás, querendo voltar, não acreditando no que estava acontecendo. A bola fez uma parábola no alto, acima da cabeça do Zinho, e voltou num piscar de olhos após, ao pé do Dé, que a dominara com maestria, antes que voltasse a atingir a água novamente. Dé ficou assim, tão paralisado quando a bola equilibrada em seu pé direito, a observar o Zinho tentando se levantar da queda. Estava boquiaberto.

Não demorou para que o Zinho, com os grandes olhos agora vermelhos de raiva, iniciasse nova perseguição.

Dé deixou de ser estátua, moveu-se com a bola fazendo embaixadas, dando chapéus nos adversários, dobrando seu corpo tal qual contorcionista para não se deixar escorregar. Seguia na direção do gol sem saber. Na verdade, fugia do Zinho, que patinava na lama, furiosamente, em sua direção.

Dé poderia simplesmente sair correndo, seria até mais fácil, mas havia dentro de si um não sei que de grude com aquela bola que não permitia abandoná-la.

Foi somente quando estava de frente para o Júlio, o goleiro, que Dé voltou a si. Enxergou o último movimento que lhe restava fazer. Sem nenhuma cerimônia, ante a aproximação do Júlio, tocou por cobertura. O Júlio ainda saltou, se esticou, gemeu, mas o máximo que conseguiu foi tocar de raspão um pedaço de couro que se desprendia da pelota.

Gol!

Os momentos seguintes poderiam ter visto o Dé comemorar seu primeiro gol no campinho. Os garotos do bairro o teriam visto correr de braços abertos até a graminha que demarcava seus limites. Ou, quem sabe, o novo artilheiro teria simplesmente fugido do Zinho, que o mirava feito predador a fitar sua presa.

Antes que o Dé pudesse levantar os braços para comemorar, antes que pudesse pensar em fugir, sentiu um forte solavanco atrás de si. Caiu de frente, com a face socada na lama. Tentou respirar, mas engoliu mais barro do que ar. Lembrou de quem o perseguia, mas não entendia como seu rival, habilidoso, porém magrelo, seria capaz de desferir um golpe tão duro, pesado, dolorido. Levantou a cabeça, mas logo veio outra pancada, no lado direito do rosto. Não demorou a reconhecer o volume do impacto, de forma que não ficou mais surpreso quando ouviu uma voz grave e encorpada lhe ordenar: “levanta daí, moleque”.

Era o seu pai.


(Continua)

domingo, 9 de dezembro de 2012

Natal Literário

O excelente site releituras preparou uma lista de contos, poesias e crônicas de imortais escritores brasileiros com temas natalinos. A lista é grande, mas destaco aqui duas poesias que ajudam a refletir sobre as expectativas de tempos melhores que começam a encher nossos corações no último e mais quente mês do "bê-érre-ó-bró":

1. Esperança (Mário Quintana)

Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
— ó delicioso vôo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...


2. Cartão de Natal (João Cabral de Melo Neto)

Pois que reinaugurando essa criança
pensam os homens
reinaugurar a sua vida
e começar novo caderno,
fresco como o pão do dia;
pois que nestes dias a aventura
parece em ponto de vôo, e parece
que vão enfim poder
explodir suas sementes:

que desta vez não perca esse caderno
sua atração núbil para o dente;
que o entusiasmo conserve vivas
suas molas,
e possa enfim o ferro
comer a ferrugem
o sim comer o não.


Ainda sob a autoria de João Cabral de Melo Neto, sempre vale a pena reler "Morte e Vida Severina", para mim, o auto de Natal mais bonito e mais brasileiro
.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Por um Natal menos ranzinza


Certa vez, em um restaurante, enquanto esperava na fila para pagar a conta, uma senhora iniciou o assunto sobre o Natal. Num misto de alegria e pressa, ela disparava para os ouvintes mais próximos a odisséia de seus preparativos para as festas. Decoração da casa, peru para a ceia, presentes para filhos, noras, netos e o sentimento gostoso de quem anseia por reencontros e momentos felizes no final de mais um ano.

Um senhor de olhar severo e ranzinza, que observava tudo a meia distância, intrometeu-se no relato da entusiasmada mulher e mandou uma das máximas mais mal-humoradas e repetidas que antecedem o Natal: “acho que essa história de Natal é tudo uma invenção do comércio para lucrar em cima dos presentes que compramos para as outras pessoas”. A pobre senhora nada disse sobre a assertiva do interlocutor indesejado e apenas se arrumou na fila para pagar sua conta. Talvez como um protesto, nenhuma outra pessoa disse algo até que todos saíssem do restaurante, cada um com o seu rumo.

Da mesma forma com a qual o Natal preenche de alegria muita gente, parece também despertar o lado mal-humorado de algumas pessoas. É óbvio que, em tempos de hipermodernidade, modernidade líquida ou pós modernidade (onde prolifera a ênfase dada ao consumo como uma forma de usufruto da felicidade), ainda são muitos os excluídos, os que passam fome, os que não vão comprar nem receber presentes, os que não terão ceia. E ainda há os que estarão sofrendo perdas, os que estarão enfermos e assim por diante. As misérias humanas são muitas, mas será que isso é motivo para descartar o Natal como uma festa de congraçamento entre as pessoas?

Faço aqui uma proposta àqueles que se tornam ranzinzas com a proximidade do feriado natalino, uma proposta aos que assumem o discurso pessimista de que nunca há o que comemorar: talvez seja bom aproveitar um pouquinho desse sentimento de indignação perante as desigualdades e comemorar o Natal arregaçando as mangas e buscando se engajar voluntariamente em campanhas natalinas para tentar mudar pelo menos uma pequena parte desse mundo que, presume-se, é tão horrível assim; talvez seja saudável não assumir uma visão fatalista do mundo, pois assim, nunca haverá algo para se festejar.

Proponho assumir que este feriado, longe de ser apenas um pretexto para o consumismo desenfreado, possa ser uma lembrança de que devemos e podemos ser solidários com as outras pessoas. Garanto que todos se sentirão recompensados e sairão deste Natal com o gostinho de que alguma coisa neste mundo pode mudar para melhor.

Há também a possibilidade mais simples, mas não menos válida, de fazer um esforço para buscar a harmonia com a família e os amigos mais próximos. Talvez o Natal seja apenas isso, um lembrete para cultivar a paz.

Mas se preferir, mais um Natal ranzinza já está batendo à porta.

Hamilton Ayres.

"Neguinho"

O “neguinho” era o garoto mais discriminado de nosso bairro, quero dizer, não do nosso bairro, pois ele não morava no conjunto habitacional de famílias pertencentes ao que normalmente se chama de classe média. “Neguinho” morava no bairro vizinho, onde não chegava a rede de esgoto e as ruas eram de barro batido. Eu nunca soube direito onde era exatamente a casa do “neguinho”, assim como não consigo me lembrar do seu verdadeiro nome, só sei que ele sempre aparecia em nossa rua para brincar conosco e era assim que o chamávamos, naturalizando um apelido originalmente pejorativo, devido à cor de sua pele.

Ainda que não fôssemos ricos, a distância social entre a nossa turma e o “neguinho” era inconteste. “Neguinho” não tinha brinquedos, ou melhor, até tinha, mas não eram comprados em loja e nem apareciam em anúncios da TV. Ele mesmo os fabricava. Uma pipa feita de plástico e talo de palha de coqueiro, carrinhos de pau, bola de meia e coisas desse tipo. Suas roupas sempre eram mais sujas e mais rasgadas que as nossas, seu corpo mais desnutrido.

E nós também éramos mais mimados. Eu, por exemplo, tinha limites geográficos precisos. Só podia brincar na outra rua em situações muito raras e com a autorização de pai e mãe sempre muito preocupados com quem andávamos ou com o que fazíamos. O “neguinho” não. Ele transitava livre pelas ruas e parecia não ter hora para voltar à sua casa. Ele também era mais ágil, subia melhor em árvores e muros e quando fugia ninguém conseguia capturá-lo.

Mas ainda não ficou claro porque ou como o “neguinho” era discriminado em nossa rua. Talvez, enquanto crianças, também não soubéssemos como isso acontecia, mas o fato é que em nossas brincadeiras, ele quase sempre era humilhado. Se jogávamos bola, exigíamos que o “neguinho” esperasse várias partidas como gandula até que déssemos a ele o direito de participar. E nós sempre exagerávamos em chutes cada vez mais distantes para que ele sofresse ainda mais com a espera.

E lá ia o neguinho, apressado, xingando nossas mães e confirmando para nós sua suposta inferioridade, posto que, apesar de tudo, ele acabava por aceitar sua condição. Nós ríamos, fazíamos piada sobre ele e, às custas do seu sofrimento, nos divertíamos.

Nas brincadeiras mais viris e violentas o “neguinho” tinha livre acesso. Mas isso acontecia porque a malhação acontecia no próprio jogo. Tudo era motivo para fazê-lo perdedor, tudo era motivo para imputar-lhe uma pena. E assim ocorria que nos “sete pecados” e no “garrafão” – brincadeiras que eu era proibido pelos meus pais de participar – o “neguinho” era sempre o que mais apanhava.

Lembro do “neguinho” em algumas festas de aniversário. Isso mesmo, o neguinho às vezes era convidado para bolo, refrigerante e lembrancinha, mas não me lembro de alguma vez terem convidado os seus pais. Será que nossos pais não os queriam por lá?

E eu ainda hoje não consigo entender porque o “neguinho” sempre voltava à nossa rua. Qual era a sua necessidade? O que ele procurava ali no local em que provavelmente ele era mais humilhado? Na sua casa seria pior? A única questão que posso responder hoje é que, para nós, aquele menino de pele negra e corpo franzino cumpria uma função expurgatória. Ele talvez fosse tudo aquilo que temíamos ser: pobres, mal vestidos, de pais ausentes e pele negra. Ter o “neguinho” por perto era como ter a confirmação de que não estávamos do lado esquecido da sociedade, aquele lado que costumávamos ver pela janela do carro quando íamos para a escola, aquele mundo de crianças de pés descalços e esgoto a céu aberto.

Eu já era adolescente quando mudei de cidade e nunca mais tive notícias do “neguinho”. Não sou capaz de prever o impacto que nossas ações possam ter tido para a vida dele. Hoje sinto vergonha do que fizemos a ele e desencanto por saber que não fomos inocentes na infância. Sempre há uma maldade em alguns atos da infância, sempre há algo do que se arrepender, sempre há algo que pode ser irremediável.

Hamilton Ayres Freire de Andrade