quarta-feira, 13 de junho de 2012

A Cidade e o Medo


Em seu livro “Medo e Confiança na Cidade”, o sociólogo Zygmunt Bauman alerta para as recentes transformações ocorridas nas grandes cidades na época chamada por ele de “modernidade líquida”. O autor traça um território demarcado pela insegurança, pelo medo e pelas incertezas de um mundo que se fragmenta a passos largos.

A cidade de nossa recente modernidade difere muito dos primeiros conglomerados urbanos, que tinham como função proteger a comunidade contra inimigos externos. Muros e fossos eram construídos no intuito de impedir invasões indesejadas. Os que estavam “dentro” constituíam certa unidade em detrimento dos que estavam “fora”. Um sentido de comunidade era formado e a necessidade de proteção era um dos principais motivos para a constituição das cidades.

Ao longo da história, a cidade sempre exerceu um grande poder de atração, seja pelo interesse primário de proteção, seja pelas inúmeras oportunidades que oferece. Experiências incríveis são oferecidas no cotidiano dos grandes centros urbanos: gente diversa, cultura de vanguarda, grandes centros de estudo e a constante promessa de viver o novo, o diferente, o inesperado. É uma atividade interessante observar os habitantes mais jovens das cidades – aqueles que mais desfrutam das chances oferecidas no espaço urbano – transitarem pelas ruas com seus aparelhos de som portáteis, carregando mochila nas costas e se alimentando de fast-food. Tudo neles indica a procura pelo novo, pelo inédito da vida.

Mas será que esse mundo de aventuras é algo que está acessível a todos? O que dizer da clivagem social, da marginalização que a cidade promove? O que dizer da massa de mendigos e sem-teto? O que dizer dos menores de rua, da prostituição infantil, dos viciados em crack e de toda sorte de gente perdida, descartada, empurrada para longe de nossa visão?

Há alguns anos, na cidade de João Pessoa, uma escola de crianças abastadas realizou uma excursão com seus alunos - bem fardados, bem cuidados e “bem cheirosos” – ao famoso e já extinto “Lixão do Roger”, depósito de lixo a céu aberto, desses em que urubus e seres humanos famintos disputam entre si os dejetos da sociedade de consumo. O pretexto da escola, muito bem explicado na reportagem da rede de TV local, era o de mostrar aos seus alunos a realidade de um outro tipo de infância – por que não dizer, maltrapilha, mal cuidada, malcheirosa – à qual eles não poderiam conhecer na realidade de suas vidas assépticas. Ao assistir a reportagem, fiquei esperando se existiria a contrapartida, ou seja, aquelas crianças com os rostos pretos da mistura entre o catarro e a imundície do lixo, talvez tivessem a oportunidade de pelo menos passar um dia na escola de bairro rico. Mas isso não seria e de fato não foi possível. No término da “visita”, as crianças de farda branca impecável voltaram ao ônibus da escola, enquanto as outras, sujas, permaneceram lá, fixadas no local de onde não conseguem sair.

O lixo mais horrendo que a cidade produz é o lixo humano. Uma gente invisível que, por sua insignificância em relação às grandes preocupações urbanas e por não contribuírem com seus motivos econômicos, incomodam, causam medo e repulsa. Para Bauman, o drama dessa “subclasse” é a impossibilidade de se desvencilhar de sua miserável territorialidade, da incapacidade de transitarem livremente nos espaços reservados ao usufruto de todas as benesses oferecidas pela cidade. Restam-lhes os espaços marginalizados, associados ao perigo e ao medo.

O grande privilégio dos mais favorecidos na modernidade recente é a indiferença que vem a reboque da vertigem do trânsito veloz daqueles que somente passam por cima das regiões marginalizadas da cidade. Eles não precisam se fixar a lugar algum e, caso algo os incomode na vizinhança, podem rapidamente mudar de residência. Seus laços com a cidade são precários.

Os cidadãos que alcançam esse ideal estão cada vez mais descomprometidos com a cidade, posto que apenas o espaço do trabalho e a reclusão em condomínios e locais de lazer cada vez mais fortificados – uma forma de mantê-los apartados dos territórios perigosos, tenebrosos, marginalizados – lhes interessam.

A reação que a maioria tem ao se deparar com a miséria, acredito, é o medo. Evita-se o contato com a parte miserável porque, na realidade urbana, miséria e criminalidade têm andado de mãos dadas. Procura-se hoje a proteção contra os inimigos que habitam a cidade, o que deixa clara a intenção de se proteger de um inimigo que é também nosso vizinho excluído.

Por isso, arrisco dizer que as crianças abastadas que visitaram o lixão em João Pessoa aprenderam não o olhar de solidariedade e de compaixão. Acredito que elas não aprenderam uma lição de justiça social e inclusão. Elas aprenderam, sobretudo, uma lição de MEDO. Medo de viver na imundície, medo de não ser criança, medo de se tornar um quase bicho. Com esse medo no peito, muito provavelmente elas se transformarão nos adultos indiferentes e temerosos no futuro.

Hamilton Ayres Freire de Andrade

--------------


Vale a pena rever o que Mia Couto tem a dizer sobre o medo:



terça-feira, 12 de junho de 2012

O país que não é nosso


Certa vez, numa de minhas férias em Salvador, fiquei estupefato com uma notícia na capa do jornal "A Tarde". Uma foto grande e colorida mostrava o lindo mar azul da Bahia ao fundo, maculado pela cena principal que exibia um soldado da PM pisando o rosto de um rapaz negro deitado na areia da praia. A notícia relatava que o jovem era suspeito de roubar a bolsa de uma turista espanhola.

À mesma época, eu estava lendo "O povo brasileiro" de Darcy Ribeiro. Existe uma passagem no livro que me fez pensar bastante sobre a matéria no jornal:

"Fala-se muito da preguiça brasileira, atribuída tanto ao índio indolente, como ao negro fujão e até às classes dominantes viciosas. Tudo isso é duvidoso demais frente ao fato do que aqui se fez. E se fez muito, como a construção de toda uma civilização urbana nos séculos de vida colonial, incomparavelmente mais pujante e mais brilhante do que aquilo que se verificou na América do Norte, por exemplo. A questão que se põe é entender por que eles, tão pobres e atrasados, rezando em suas igrejas de tábua, sem destaque em qualquer área de criatividade cultural, ascenderam plenamente à civilização industrial, enquanto nós mergulhávamos no atraso."

"As causas desse descompasso devem ser buscadas em outras áreas. O ruim aqui, e efetivo fator causal do atraso, é o modo de ordenação da sociedade, estruturada contra os interesses da população, desde sempre sangrada para servir a desígnios alheios e opostos aos seus. Não há, nunca houve, aqui um povo livre, regendo seu destino na busca de sua própria prosperidade."

O mundo colonial pujante que Darcy Ribeiro fala pode ser visto nas cidades históricas de Minas Gerais. Tive a oportunidade de viajar para algumas delas e a que mais impressiona, sem dúvida, é Ouro Preto. E que sorte a minha quando logo no primeiro dia aconteceu um réquiem na Igreja de São Francisco de Assis, a mais bela de todas. É difícil descrever quão lindas são as esculturas de Aleijadinho e as pinturas do Mestre Ataíde, verdadeiros artistas mulatos inseridos no mundo de ganância e segregação dos portugueses.

Quem visita a Casa dos Contos, também em Ouro Preto, percebe que toda aquela pujança não era para o gozo dos brasileiros. Na mesma construção que servia para a cunhagem do ouro que era enviado a Portugal, existe hoje uma exposição dos instrumentos de tortura dos escravos. Eis a sangria de que Darcy Ribeiro fala. Não há como negá-la.

Em Salvador, outro lugar onde até hoje é possível presenciar a riqueza do barroco brasileiro, a pujança também não pode ser alcançada pela massa pobre e pisoteada. A ostentação dos hotéis de luxo, os sofisticados restaurantes, as orlas privativas dos grandes resorts têm como razão de existência aquela turista espanhola assaltada na praia e não a multidão pobre da cidade, que apenas esmola as migalhas que caem das mãos ricas do turismo. Assim são os meninos e meninas que vendem fitas do Nosso Senhor do Bonfim, os cordeiros do carnaval, as menores que vendem a dignidade por dólares e euros nos night clubs e equinas de Amaralina.

O jovem negro com a marca do coturno no rosto é a viva fisionomia de que a sangria ainda não foi estancada. Não sei se ele é realmente culpado pelo assalto, nem posso dar um veredito sobre que punição ele mereceria se o tivesse cometido. Tento interpretar, no entanto, a mensagem que a ação do policial mal treinado passa: "este chão não é seu, nele você pode apenas sangrar para servir a desígnios alheios e opostos aos seus".
A sorte é que nosso povo cria seus próprios meios de plenitude. Nosso caldo cultural foi forjado na resistência, na insistência e na teimosia de expressar, por meios diversos, que este solo, que este Brasil, é nosso. Quem sabe não foi inspirado por uma teimosa brasilidade, que o Mestre Ataíde pintou a Nossa Senhora e os querubins à sua volta com expressões mulatas?