terça-feira, 12 de junho de 2012

O país que não é nosso


Certa vez, numa de minhas férias em Salvador, fiquei estupefato com uma notícia na capa do jornal "A Tarde". Uma foto grande e colorida mostrava o lindo mar azul da Bahia ao fundo, maculado pela cena principal que exibia um soldado da PM pisando o rosto de um rapaz negro deitado na areia da praia. A notícia relatava que o jovem era suspeito de roubar a bolsa de uma turista espanhola.

À mesma época, eu estava lendo "O povo brasileiro" de Darcy Ribeiro. Existe uma passagem no livro que me fez pensar bastante sobre a matéria no jornal:

"Fala-se muito da preguiça brasileira, atribuída tanto ao índio indolente, como ao negro fujão e até às classes dominantes viciosas. Tudo isso é duvidoso demais frente ao fato do que aqui se fez. E se fez muito, como a construção de toda uma civilização urbana nos séculos de vida colonial, incomparavelmente mais pujante e mais brilhante do que aquilo que se verificou na América do Norte, por exemplo. A questão que se põe é entender por que eles, tão pobres e atrasados, rezando em suas igrejas de tábua, sem destaque em qualquer área de criatividade cultural, ascenderam plenamente à civilização industrial, enquanto nós mergulhávamos no atraso."

"As causas desse descompasso devem ser buscadas em outras áreas. O ruim aqui, e efetivo fator causal do atraso, é o modo de ordenação da sociedade, estruturada contra os interesses da população, desde sempre sangrada para servir a desígnios alheios e opostos aos seus. Não há, nunca houve, aqui um povo livre, regendo seu destino na busca de sua própria prosperidade."

O mundo colonial pujante que Darcy Ribeiro fala pode ser visto nas cidades históricas de Minas Gerais. Tive a oportunidade de viajar para algumas delas e a que mais impressiona, sem dúvida, é Ouro Preto. E que sorte a minha quando logo no primeiro dia aconteceu um réquiem na Igreja de São Francisco de Assis, a mais bela de todas. É difícil descrever quão lindas são as esculturas de Aleijadinho e as pinturas do Mestre Ataíde, verdadeiros artistas mulatos inseridos no mundo de ganância e segregação dos portugueses.

Quem visita a Casa dos Contos, também em Ouro Preto, percebe que toda aquela pujança não era para o gozo dos brasileiros. Na mesma construção que servia para a cunhagem do ouro que era enviado a Portugal, existe hoje uma exposição dos instrumentos de tortura dos escravos. Eis a sangria de que Darcy Ribeiro fala. Não há como negá-la.

Em Salvador, outro lugar onde até hoje é possível presenciar a riqueza do barroco brasileiro, a pujança também não pode ser alcançada pela massa pobre e pisoteada. A ostentação dos hotéis de luxo, os sofisticados restaurantes, as orlas privativas dos grandes resorts têm como razão de existência aquela turista espanhola assaltada na praia e não a multidão pobre da cidade, que apenas esmola as migalhas que caem das mãos ricas do turismo. Assim são os meninos e meninas que vendem fitas do Nosso Senhor do Bonfim, os cordeiros do carnaval, as menores que vendem a dignidade por dólares e euros nos night clubs e equinas de Amaralina.

O jovem negro com a marca do coturno no rosto é a viva fisionomia de que a sangria ainda não foi estancada. Não sei se ele é realmente culpado pelo assalto, nem posso dar um veredito sobre que punição ele mereceria se o tivesse cometido. Tento interpretar, no entanto, a mensagem que a ação do policial mal treinado passa: "este chão não é seu, nele você pode apenas sangrar para servir a desígnios alheios e opostos aos seus".
A sorte é que nosso povo cria seus próprios meios de plenitude. Nosso caldo cultural foi forjado na resistência, na insistência e na teimosia de expressar, por meios diversos, que este solo, que este Brasil, é nosso. Quem sabe não foi inspirado por uma teimosa brasilidade, que o Mestre Ataíde pintou a Nossa Senhora e os querubins à sua volta com expressões mulatas?

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