quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

"Neguinho"

O “neguinho” era o garoto mais discriminado de nosso bairro, quero dizer, não do nosso bairro, pois ele não morava no conjunto habitacional de famílias pertencentes ao que normalmente se chama de classe média. “Neguinho” morava no bairro vizinho, onde não chegava a rede de esgoto e as ruas eram de barro batido. Eu nunca soube direito onde era exatamente a casa do “neguinho”, assim como não consigo me lembrar do seu verdadeiro nome, só sei que ele sempre aparecia em nossa rua para brincar conosco e era assim que o chamávamos, naturalizando um apelido originalmente pejorativo, devido à cor de sua pele.

Ainda que não fôssemos ricos, a distância social entre a nossa turma e o “neguinho” era inconteste. “Neguinho” não tinha brinquedos, ou melhor, até tinha, mas não eram comprados em loja e nem apareciam em anúncios da TV. Ele mesmo os fabricava. Uma pipa feita de plástico e talo de palha de coqueiro, carrinhos de pau, bola de meia e coisas desse tipo. Suas roupas sempre eram mais sujas e mais rasgadas que as nossas, seu corpo mais desnutrido.

E nós também éramos mais mimados. Eu, por exemplo, tinha limites geográficos precisos. Só podia brincar na outra rua em situações muito raras e com a autorização de pai e mãe sempre muito preocupados com quem andávamos ou com o que fazíamos. O “neguinho” não. Ele transitava livre pelas ruas e parecia não ter hora para voltar à sua casa. Ele também era mais ágil, subia melhor em árvores e muros e quando fugia ninguém conseguia capturá-lo.

Mas ainda não ficou claro porque ou como o “neguinho” era discriminado em nossa rua. Talvez, enquanto crianças, também não soubéssemos como isso acontecia, mas o fato é que em nossas brincadeiras, ele quase sempre era humilhado. Se jogávamos bola, exigíamos que o “neguinho” esperasse várias partidas como gandula até que déssemos a ele o direito de participar. E nós sempre exagerávamos em chutes cada vez mais distantes para que ele sofresse ainda mais com a espera.

E lá ia o neguinho, apressado, xingando nossas mães e confirmando para nós sua suposta inferioridade, posto que, apesar de tudo, ele acabava por aceitar sua condição. Nós ríamos, fazíamos piada sobre ele e, às custas do seu sofrimento, nos divertíamos.

Nas brincadeiras mais viris e violentas o “neguinho” tinha livre acesso. Mas isso acontecia porque a malhação acontecia no próprio jogo. Tudo era motivo para fazê-lo perdedor, tudo era motivo para imputar-lhe uma pena. E assim ocorria que nos “sete pecados” e no “garrafão” – brincadeiras que eu era proibido pelos meus pais de participar – o “neguinho” era sempre o que mais apanhava.

Lembro do “neguinho” em algumas festas de aniversário. Isso mesmo, o neguinho às vezes era convidado para bolo, refrigerante e lembrancinha, mas não me lembro de alguma vez terem convidado os seus pais. Será que nossos pais não os queriam por lá?

E eu ainda hoje não consigo entender porque o “neguinho” sempre voltava à nossa rua. Qual era a sua necessidade? O que ele procurava ali no local em que provavelmente ele era mais humilhado? Na sua casa seria pior? A única questão que posso responder hoje é que, para nós, aquele menino de pele negra e corpo franzino cumpria uma função expurgatória. Ele talvez fosse tudo aquilo que temíamos ser: pobres, mal vestidos, de pais ausentes e pele negra. Ter o “neguinho” por perto era como ter a confirmação de que não estávamos do lado esquecido da sociedade, aquele lado que costumávamos ver pela janela do carro quando íamos para a escola, aquele mundo de crianças de pés descalços e esgoto a céu aberto.

Eu já era adolescente quando mudei de cidade e nunca mais tive notícias do “neguinho”. Não sou capaz de prever o impacto que nossas ações possam ter tido para a vida dele. Hoje sinto vergonha do que fizemos a ele e desencanto por saber que não fomos inocentes na infância. Sempre há uma maldade em alguns atos da infância, sempre há algo do que se arrepender, sempre há algo que pode ser irremediável.

Hamilton Ayres Freire de Andrade

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